A mão esquerda

 

Roniwalter Jatobá

 

Ruas, todas no Brás, cheias de vai e vem no fim da tarde: Rangel Pestana, Joaquim Nabuco, Gomes Cardim e a Cavalheiro cheia, também, de ônibus que vão cruzar estradas, Estados e, gente nas ruas, aqui, bestando, correndo pra estação do trem da Central procurando rumo de São Miguel Paulista, Guaianases, Moji, passando homens, mulheres, crianças, todos com seus sonhos, sem sonhos e sonolentos, que partem, que chegam, que trazem esperanças, que voltam vazios de fé, bem vestidos de roupas coloridas, jaquetas compradas a prestações, já liquidadas na Rua Oriente, Maria Marcolina, que apreciam violeiros no Largo da Concórdia e discos ouvidos nas portas das lojas, que compram elixir milagroso de um homem apregoando o remédio para todos os males do corpo.

Você, parado, olhando as rodas de gente observa os passos dos homens neste começo de noite e o movimento da rua, lhe xingam por atrapalhar o rebuliço na calçada apertada, você nem liga e só chega mais pra perto do meio-fio dando passagem. Continua olhando o motorista de um ônibus quando ele começa a receber as passagens, depois, quando coloca as malas no bagageiro. Pra você tudo aquilo por ora é importante, parece ser, depois você descobre que existe na calçada do outro lado da rua um homem parado, calado, que olha o ônibus, aí, ele vai se aproximando devagar, devagarinho no rumo do ônibus, vai se esforçando em carregar a mala com a mão direita. A mão esquerda, você vê, aparece dentro das suas vistas como uma volumosa mancha branca. A mancha, agora, cresce dentro destes olhos seus.
No homem: existe uma história, uma linguagem que é parecida com a sua, uma magreza na face que é a magreza sua, e você se sente como se fosse ele. E assim é.

Não há dúvida que o ônibus é aquele. Nada mudou: o azul tomando toda a lataria, faixas brancas correndo pelo azul, o cavalo empinando e querendo galopar desenhado na porta, o motorista outro, neste anos. Hoje, assim como o motorista mudou, não há na calçada da Rua Cavalheiro aquele menino que chorava medroso agarrado às calças brancas do homem, deixando as marcas de suas mãos meladas de doce, que havia na vinda, quatro anos contados nos dedos firmes, bem assim cheguei. Havia o medo da rua que eu olhei, conferi um lado da rua, o outro, e senti tudo estranho no que eu via, esse mundo de São Paulo, de sonhos sonhados nas beiras do rio me empapuçando de jaca mole ou rezando com o pensamento nessa terra, lá, nas novenas de janeiro com o olho gordo nas formas das moças: Deolinda, Mila, Tonha, todas.

Tento me esforçando segurar a mala com a mão direita, a mão canhota me dói, me arde, queima como se brasa corresse a pele, desisto, confiro a passagem. Não sinto os dedos ou restos de dedos da mão esquerda que estão escondidos nesta faixa de pano branco, agora, pardo sujo de poeira que balança ao menor movimento do meu corpo, o braço procurando apoio, doendo. Levanto a mala e saio arrastando o peso no rumo dos ônibus, pessoas passando apressadas, como um coro barulhento de vozes, deles, e se perdem, os vultos, nas ruas atrás dos postes e das cores dos carros. Agora, volto no acompanhamento das notícias que já foram, há dias, avisando.

Fico lembrando a mesa da prensa pintada de tinta recente, azul, o molejo dela no sobe e desce e minha mão que ficou parada como mão de morto, mão de morto pois nem veio no pensamento da cabeça aquela vontade e ligeireza de puxar a mão, fiquei na frieza de um homem morto, a mão recebeu a força das toneladas de peso, ainda vi a cor do sangue, os dedos esmagados, esfolados numa cor só, e fui vendo a morte, o medo de morrer que se fez sentir com os gritos que soltei, gritei, gritei de dor, raiva de acontecer aquilo, o grito ecoando nas outras prensas, homens correndo, vi, homens me segurando nos braços, segurando agarrando minha cabeça que começava a pender de banda, vi, o assoalho lavado de sangue, fui vendo, vendo, sumindo, se apagando os homens, neblinando nas vistas os dedos sujos, nada mais vi. Depois, vi a roupa branca do enfermeiro, o olhar dele de dó, a minha mão parada, quieta ao lado do corpo, sem dor na hora agora, só pesada sem se bulir, um frio em todo o corpo de vento gelado. E foi passando na cabeça o meu choro, o sangue melando a máquina, o azul dela, fui sentindo vergonha, não me veio um tico de nada de ódio da prensa, da prensa que me deixou com tocos de dedos, um homem aleijado, inutilizado como dizem por aí, não, não senti raiva cega da máquina, só da minha fraqueza, do meu medo, do descuido, do choro, essa mão, agora, pois vê, pesada e quieta como se não parecesse minha.

Natanael Martins, filho de Elias e Marta Martins, solteiro, vinte e três anos... assim preenchi a ficha na fábrica, rabiscando, desenhando as letras bem como dona Zilda tinha ensinado. Empregado, fichado, carimbo estampado em azul nas páginas da profissional, na primeira semana de serviço na fábrica, beirada de linha Santos-Jundiaí, na Lapa. De pouco tempo, aqui, ficava achando impossível escutar, pois escutava, o barulho da bigorna na ferraria do meu pai, aquele barulho de lá, zunindo, se indo pelas frestas da casa, os ouvidos de mãe acostumados, nem ligando mais, o zunir de ferro contra ferro, ferro saindo em labaredas, se queimando, vermelho em brasa, e aquele toque se pondo em choque na rua, se escutando ao longe, eu na ajuda, repicando, aprendendo.

Uma semana, duas semanas, três semanas, fui dizendo isso pra casa, informando a família que nesse tempo, agora passado, já tinha a carteira profissional fichada, no primeiro pagamento, que não é muito, mando alguma coisa, um adjutório. Uma carta que queimava a mão, que me suava entre os dedos, que foi seguindo por mão própria e daqui a três dias mãe ia sair pela noite, ia cruzar a rua com um candeeiro em cima da cabeça alumiando os seus passos, o vento ia zunir de leve no tempo morno fazendo tremular a labareda e ia aí alguém ler pra ela essas linhas que escrevo neste quarto.
Terceira semana aqui em São Paulo é o começo de tudo. Segunda-feira me levantando no chegante da manhã e me indo como todo mundo vai no rumo da Lapa. Tudo em volta, a viagem de trem que me atrai sempre, atraindo mais, desço do trem, caminho pela rua da fábrica, confiro a profissional no bolso da calça, pergunto as horas ao primeiro passante, seis e quinze, o homem me responde assustado e caminha apressado pela rua coberta de fumaça branca de neblina, encosto na parede esburacada da fábrica e fico esperando o horário das sete que vai fazer acordar o movimento do prédio que, agora, parece tão morto, tão triste e silencioso.

Você vai indo sentado de olhos parados e encostado ao vidro da janela do ônibus e vê a rua. Nada pra você é estranho: a rua, a fábrica que você vê todo dia, o mendigo encolhido tremoso de frio coberto de jornal naquela esquina, o vento que sopra dos trilhos como soprado pelas locomotivas que passam pegando velocidade e você passa dentro do ônibus olhando a rua, quem sabe até me vê caminhando nessa hora da manhã no rumo da fábrica nesse primeiro dia de trabalho ou me vê já parado quieto aqui na frente esperando a hora, sete horas. Não lhe aceno nem você também, somos estranhos e desconhecidos.

Às sete horas, faça sol ou chuva, a fábrica começa a se movimentar, vou caminhando entre as máquinas, muitas máquinas que tomam os cantos, o meio e os lados do grande terreno construído há muito tempo. Pouco converso, logo não conheço ninguém, faço só o que me mandam. Gostaria de falar de pai, do trabalho dele na ferraria de sol a sol com dias entrando na noite, sei, aqui ninguém conhece ele. Nem o lugar de onde vim, como é mesmo o nome?, isso quando pude falar, repeti, não conheço não, dizem. Quem iria conhecer o Elias Ferreiro?, fico me achando bobo por achar que esses homens que trabalham nessas máquinas tão cheias de vida, tão ligeiras que sobem e descem no simples apertar do botão, depois no pedal, sobem e descem com as peças saindo de lado, prontas, certinhas como se Elias Ferreiro tivesse trabalhado, suado na forjaria, suando na bigorna três semanas pra fazer uma, uma só peça tal e qual, tivessem ciência da vida dele.

Dias, sempre, ficava, entre uma labuta e outra, olhando as chapas de aço fino seguras nas mãos de seu Ismael, vendo seu Ismael apertar nos botões, o pé no pedal, botar a chapa uma por uma na mesa da prensa e a prensa descer, subir, descer, consumindo as chapas e fazendo delas peças e mais peças. Eu ficava como dormindo, esquecia o outro serviço, depois me lembrava, corria fazendo a obrigação, voltava e me postava junto da prensa com o corpo parado, quieto, quase não se movendo, as vistas descendo e subindo como o movimento da máquina, no acompanhamento dela. Seu Ismael me olhava com cara de pai, sorria do meu interesse e dizia que olhando se aprende, ele tinha aprendido assim, vai vendo, vai gravando na cabeça os botões, o pedal, quem sabe um dia precisem de alguém pra ficar no meu lugar, não lhe aconselho esse serviço de doido, completava. Não gosto de falar nesse homem, o caso do seu Ismael como falam por aí, que me ensinou, me fez ver as artimanhas da prensa, resumia os perigos dela -- cuidado!, depois, a máquina alcançou a sabedoria dele, alguns dizem que ele já era velho, não achava, foi descuido, cochilo na hora que a prensa desceu e encontrou a mão dele, os dedos no caminho, cortou fora só um, muita sorte, disseram.

Todos os dias, o movimento das máquinas que batem e rebatem, as peças ficando prontas, o barulho das prensas fazendo com que a gente pouco converse dentro da fábrica, pouco se fale, a zoada escondendo as nossas vozes ou fazendo entender as palavras muito mal. Pouco ligava pra conversa. Ficava era olhando querendo aprender. Queria aprender a apertar aquele botão verde na hora certa, ver a chapa fina se transformar naquela peça que se esconde em todos os carros.

E toda noite de domingo escrevia pra casa contando dessa vitória, que um prensista disse que ia me ensinar, estava quase aprendendo, ia me fazer prensista igual a ele. Querendo aprender a apertar aquele botão vermelho que segura a máquina, a prensa fica parada no ar esperando o outro botão, o pedal ser apertado, ficava só olhando, tudo aquilo ia entrar no juízo não ia demorar muito, contava imaginando.

Durante as noites ficava rabiscando no papel uma maneira de aprender mais ligeiro, que aquela idéia toda me entrasse na cabeça, que aqueles botões não se embaralhassem nesse juízo de pouco estudo e, quando eu novamente escrevesse pra casa e contasse pra pai que trabalho naquela máquina, o nome dela é prensa, diria o modelo, a tonelagem da força dela, aquela máquina que faz o serviço de um ano dele em poucas horas, ele não vai acreditar e vai pedir pra dona Zilda, que é quem escreve as cartas respondendo as minhas, pra sondar como é a máquina, se é grande, como ela trabalha, quantas pessoas lidam com ela. E de noite quando estiver lá no quarto da pensão na Rangel Pestana, que rasgar o envelope, que começar a ler as palavras dele, sei que vou rir da pouca sabedoria dele, dele nem imaginar nada daquela máquina que tem lá na fábrica. Sei, sim, que vou rir.

E vou continuar a rir, amanhã no trem, no primeiro trem da manhã, me rindo e me perguntando por que todo mundo que anda ali no trem, encostado na porta, respirando o vento frio e molhado dessa hora fica com a tristeza estampada no rosto, olhos pesados, sanados, pouco conversa. Como gostaria de contar pra alguém, dizer da máquina, da prensa pintada de azul com os botões azuis, vermelhos, verdes e que faz vencidades de peças por dia. Mas todos dentro do trem parecem dormir.

No domingo, pego na caneta e escrevo pra casa. Vou contar que já tomo conta da máquina sozinho, vou dizer que a sorte me ajudou, não vou contar do acidente, do dedo de seu Ismael perdido, conto que seu Ismael adoeceu, assim não preocupo o juízo fraco de mãe, escrevo que faltou gente pra botar a máquina pra funcionar, me ofereci, ninguém, acho que nem eu acreditava, coloquei a máquina pra virar, no começo o movimento da prensa foi devagar, devagarinho, depois, já quase no final da tarde, ela descia e subia na ligeireza do meu pé que tocava o pedal de comando.

E no trem no fim da tarde aparecia a minha prensa, toda azul me aparecendo perfeita como era lá na fábrica, pelo vidro sujo da janela. Olhava para os lados, uma vontade crescente de pegar alguém pelo braço e pedir pra ele ver também na janela até a marca da máquina que aparecia completa no fosco do vidro. Ninguém acreditaria, mesmo, me chamariam de doido ou ririam da minha cara, achava. Quietava num canto. Ficava sozinho com esta minha visão que sabia não ser verdade, mas acreditava nela.

Não via a hora do domingo passar, escrevia a carta no fim da tarde ou ficava vendo as pessoas passarem em direção aos bares do Brás, no rumo do Cine Piratininga, nada disso me animava, como ia dizendo, escrevia a carta que na segunda-feira iria para o correio, e ficava torcendo que o resto do domingo se fosse mais rápido, que o domingo desaparecesse logo, que o dia findasse, que a noite aparecesse e no sono da noite as horas corressem ligeiras. E chegasse a segunda-feira. Pulando da cama antes do toque alto do relógio despertador. Pegando o primeiro trem da manhã, descendo na estação e me indo devagar pela rua que já se movimenta de gente, chegando em frente à fábrica faltando meia hora pras máquinas começarem a funcionar no trabalho diário, não vendo a hora que os relógios apontassem o ponteiro nas sete horas. Aí, vendo a máquina, a prensa, como viva na minha frente, parecendo gente de corpo, de alma, a máquina que fazia o trabalho de mil Elias, meu pai, Ferreiro, parado e lento Elias, bem comparado.

O motorista do ônibus vê a minha mão enfaixada enrolada de pano e segura na mala me ajudando. Ele pega a passagem. Subo no ônibus. Parece que mudei nesses derradeiros dias, devo ter mudado. Quando comecei a trabalhar na prensa, na máquina de seu Ismael, esqueci do mundo e dele que tinha me ensinado, achava que aquilo era tudo que queria na vida. Sem os dedos não vai ser mais prensista, dizem, agora. E contei nas mesmas linhas da carta essa história toda pra Elias e Marta. E quando minha mãe subir a ruazinha de candeeiro na cabeça, carta amassando no escuro da noite, a luz apaga não apaga no rumo da casa de dona Zilda, quando dona Zilda começar a ler a carta, esta carta que escrevi há quatro dias, ela vai enrugar a testa, dar uma parada na leitura, olhar pra minha mãe, meu pai vai tossir forte naquela tosse forte dele limpando a garganta e vai lá fora pra dar uma cuspida no terreiro, enquanto isso dona Zilda vai ficar olhando pra minha mãe, vai dizer estranho, vai saltar as linhas em que eu falo da minha mão e dos dedos perdidos e, quando meu pai novamente entrar na casa limpando o nariz na manga da camisa curta, dona Zilda vai esperar ele sentar na cadeira, ela vai enrugar e desenrugar a testa e vai dizer que seu filho Natanael já vem quase chegando.
Mais tarde, não vai ter ninguém naquela hora acordado, mas o massacre daquela bigorna vai encher o silêncio da noite de um som alegre de chegada acordando meio mundo.
Mãe vai dizer: Elias vai dormir!
Ele vai responder: não, o repique na bigorna, a brincadeira de repicar no ferro do homem aqui e Natanael, meu filho, logo vai recomeçar.
E parece que você sentado na poltrona do ônibus vai vendo o velho Elias forjar a ferradura vermelha em fogo sobre a bigorna e olha o ferro em brasa que esfria sobre a mesa, esperando o retoque final, o retoque final seu.
E você no pensamento pergunta respostando:

Ferreiro Natanael onde andou teu corpo?
Sei que andou andou;
Prensista Natanael onde andou tua mão?
Sei que andou andou:
Homem Natanael onde andou teu sonho?
Sei que andou andou
Ferreiro, Prensista, Homem Natanael onde andou tua vida?
Desandou desandou

E Elias, teu pai, Elias Ferreiro, esperando, de longe, grita:

Filho Natanael, pois retoque e repique este ferro em brasa na bigorna tua.

 

 

 

 


 

 

 

 

Cartas@amizade.com

Roniwalter Jatobá

Gosto de receber cartas. Quando vivia em São Miguel Paulista, um bairro da periferia paulistana, explodia de alegria ao ver o carteiro chegar à antiga rua 4, hoje Raquela Sinopoli, ao lado do secular Mercado Municipal. Vestido de farda amarela, bolsa às costas, ele passava sempre nas manhãs de sexta-feira. Era pontual o mensageiro de más e boas-novas.
Chamava-se Agenor. Desconheço alguém que conhecesse tanto a Zona Leste da metrópole. Sabia de tudo, do Jardim Helena à Penha de França. De Itaquera a Ermelino Matarazzo. Bem humorado, sempre tinha uma palavrinha para alegrar a vida e a alma dos moradores – onde andará?
Ficava sempre à sua espera. Às sextas, Agenor sempre apontava na rua estreita com volumosos envelopes enviados por meus pais do sertão baiano e a presença daquele homem jovial me dava a sensação de que não estava sozinho no mundo, pelo menos quatro vezes por mês.
Nos últimos tempos, venho recebendo reclamações de amigos, principalmente do jornalista Valdomiro Santana e do poeta Ruy Espinheira Filho. Ambos sentem minha falta nas festas da Bahia, mas a lamúria maior é sobre a total escassez de minhas cartas. Depois que me acostumei com a facilidade do telefone e penso em filas nos correios, raramente escrevo umas duas linhas. O poeta, que guarda tudo, até bilhete escrito em embrulho de pão, sempre escreve lamentando:
-- Quando você não era tão preguiçoso, me escrevia -- anota ele. -- É respeitável a sua correspondência em meu arquivo.
Já o jornalista não deixa por menos e sempre ataca a minha velha e esfarrapada desculpa da falta de tempo.
-- Velho, realmente não dá para comparar carta e telefonema – escreve. -- São papos totalmente diferentes. O da carta atravessa o tempo, o do telefonema, não.
Dou razão aos dois. O escritor Sílvio Fiorani conseguiu reconstituir toda a sua infância no interior paulista por meio de cartas trocadas entre sua irmã e o atual marido, já que na década de 1950 ambos moravam próximos na região de Vista Alegre do Alto. Embora nas noites escuras pudessem visualizar as luzes das cidades vizinhas, o casal de namorados se correspondia todos os dias e a jovem moça contou, em centenas de cartas, desde a saudade do amado até uma suave febre, o sarampo e o braço (esquerdo) quebrado do irmão mais novo.
Quem pode esquecer da vasta correspondência do escritor paulistano Mário de Andrade? Morto em 1945, aos 51 anos, escreveu sobre tudo o que se imagina e ainda achou tempo para redigir uma pilha de missivas durante sua vida (umas 3.000, calcula-se por baixo). Só para se ter uma idéia, já foram publicados mais de 15 volumes apenas com suas cartas. "Se um jovem dos confins do Piauí lhe escrevia, contando esperanças literárias, chorando mágoas, pedindo conselhos ou simplesmente livros, Mário de Andrade se absorvia totalmente no problema desse moço desconhecido, pensava nele, imaginava soluções e lhe mandava uma resposta de dez páginas, em que o rapazinho se sentia de repente dignificado, compreendido, consolado, estimulado ou socorrido", conta o professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), Antonio Candido, casado com uma prima de Mário.
Posso estar errado, mas acho que os bons tempos das cartas estão de volta. Todos os dias, recebo uma, duas ou até três. Não pelas mãos do carteiro, mas via internet. Sinto que as pessoas vão perdendo o medo de se expressar pela palavra escrita e voltam a escrever, agora com a comodidade e a economia advindas com o correio eletrônico. Pouco a pouco, muitos começam a atravessar o espaço e, também, o tempo.
Eis aqui uma carta que recebi outro dia. Tirei uma cópia para guardá-la com carinho como se fosse recebida das mãos do carteiro Agenor. E reproduzo-a palavra por palavra, de acordo com o original.
"É curioso escrever para quem não se conhece pessoalmente. Quem te escreve é uma pessoa que foi surpreendida por três coincidências. A primeira está relacionada com o fato de termos o mesmo sobrenome (jatobá), provavelmente temos algum parentesco em nossa árvore genealógica. A segunda por gostarmos de escrever (escrevo, como tantos anônimos no País... brinco de escrever). A terceira é porque somos nascidos no mesmo dia do mês (também faço aniversário em 22 de julho).
Permita-me que me apresente, meu nome é Ana Izabel Jatobá de Souza. Atualmente, sou a mais nova professora do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Sou natural de Mato Grosso do Sul (Ladário, vizinho de Corumbá). Tenho 34 anos, casada, sem filhos e com muitos sonhos. Estou aprendendo a navegar na internet, e por curiosidade digitei a palavra jatobá e, além de muitas árvores e fábricas de móveis, encontrei a tua página pessoal. Fiquei encantada em conhecê-lo e espero que esta carta chegue via correio eletrônico. Isto é, se fizer tudo certo. Inseguranças de principiante.
Sem mais, um abraço solidário das coincidências da vida.”
Já recebi mais três cartas da possível parente distante e tenho certeza que daí já nasceu uma sólida e fraternal amizade. Outra noite, no silêncio do meu apartamento, numa rua paralela à avenida Paulista, até pensava nas “coincidências da vida” – e no tempo.
Que coisa é o tempo, não é? Nada me fascina mais (e me perturba) do que o tempo. Quando estamos felizes, mas de uma felicidade sem tamanho, o tempo flui depressa. Anoitece e amanhece e não nos damos conta de que a noite já passou.
 Vivência oposta, e também paradoxal, é quando estamos tristes e infelizes. Sentimos um medo vago, difuso, um medo que não sabemos de onde vem, como se fosse acontecer ou já estivesse acontecendo uma desgraça. Então, o tempo é uma tartaruga ou mais lento do que uma tartaruga. Cada minuto é como se fosse feito de chumbo.

 

 

 


 

 

 

 

 

 

A filha do príncipe

Roniwalter Jatobá

 

Chamava-se Leididai. Contaram outro dia, em São Miguel Paulista, que esse não era o seu nome verdadeiro. O escrivão do registro civil, ciente da lei, não quis aceitar o que era desejo da família. Com o consentimento amuado do pai, o oficial marcou no papel Eva ou Maria Aparecida. Na morada à beira do riacho Jacuí, porém, a menina foi sempre chamada -- e agora lembrada -- do jeito que todos gostavam: Leididai.
Nascera em 1982. Três meses depois do casamento do século, aquele que uniu o príncipe de Gales e a jovem Diana Spencer, a menina foi batizada numa cerimônia coletiva num galpão comunitário do Jardim Pantanal. O padre abençoou a todos e os pais da menina, Aírton e Ester Silveira Lima, se sentiram também nas graças de Deus, naquele domingo. 
Ester era mulata, beirava os trinta anos, ágil como um demônio. Diarista de segunda a sábado, limpava com presteza e dignidade as sujeiras de um asilo para idosos ricos numa travessa da rodovia Raposo Tavares. Aírton era loiro, tinha ainda entranhado nas veias os resquícios das noitadas sexuais dos colonizadores holandeses no Ceará do século 17. Pelo porte, era chamado de Príncipe, apelido que o deixava orgulhoso, mas triste pela sua contínua e hereditária pobreza. Trabalhava de borracheiro numa travessa da avenida Guilherme Cotching, na Vila Maria, mãos calejadas de recauchutar precários pneus de caminhão.
-- É a minha princesa -- exaltava o pai quando passeava aos domingos com a menina já grandinha, toda arrumada pelas mãos da mãe que lhe fazia todas as vontades. -- Veja... -- e mostrava aos amigos os seus cabelos loiros e crespos, herdados dos dois, artisticamente trançados e bem penteados.
Embora fosse uma menina graúda, de aparência saudável, mostrava-se frágil com as mudanças do tempo. Nos meses de chuva, quando as águas do Tietê avançavam pela região insalubre, ela passava as noites com a respiração ofegante como se um ser fantasmagórico apertasse a sua garganta. No decorrer de sua vivência, a menina teve cachumba e outras doenças, e no primeiro aniversário quase morre de desidratação. Resistiu, no entanto. Quando completou cinco anos, já se virava sozinha na pequena moradia, apenas com a ajuda de uma vizinha prestativa. Enquanto os pais corriam por São Paulo durante o dia, ela brincava de boneca em frente à velha TV sempre ligada ou, em raras tardes, se juntava às dezenas de crianças de sua idade à beira de uma lagoa, onde se divertia com uma alegria inocente.
-- Leididai não anda nada boa -- disse a mãe num frio anoitecer quando Aírton pisou na soleira da porta.
Era sábado, tinha chegado de pouco. Cansado, dia inteiro no trabalho, ainda vinha com o corpo frio do chuvisquinho que pingava lá fora. Nesse instante, Ester correu para o cômodo dos fundos sem ninguém chamar, preocupada, apressada, limpando as mãos no avental claro e úmido.
O Príncipe só estranhou. Depois, correu para lá quando sentiu os gritos da menina. Assim mesmo pensou em gritos de medo ou podia mesmo ser divertimento em frente à televisão. Mas não, muito pior.
A menina, deitada no sofá que servia de cama, enrolada num cobertor grosso, se estrebuchava como se estivesse mordida de cobra. Gritava de fazer dó, chorava um choro pesado, choro sofrido de muita dor e fraqueza. O Príncipe então agarrou Leididai, jogou uma toalha por sobre sua cabeça, jeito de se livrar da chuva.
-- Fique aí – ele disse para a mulher.
Correu pela rua se livrando das poças d’água e montes de lixo. Atravessou a estrada de ferro, cortando caminho entre fios elétricos e canos de água clandestinos. Seguiu pelos trilhos, ouvidos atentos para o barulho de uma noturna composição. Cruzou uma pinguela no riacho Jacuí e, em passos largos e encharcados, pisando forte agora nas manchas de chuva sobre o asfalto, alcançou a antiga estrada São Paulo-Rio.
Entrou no hospital ao lado do Mercado Municipal, molambo molhado de gente. Na sala de espera, olharam para ele assustados. Parou. Depois, o Príncipe esperou zanzando de um lado para outro, filha no colo. Cadeiras ocupadas, tremura nas pernas. A enfermeira, sentada, cega para eles, parada. Ele chamou um doutor que passava apressado, roupa branca de cima a baixo, que pusesse na frente sua filha, Leididai.
-- É doença da brava – o Príncipe implorou. -- Veja... -- mostrando as manchas que começavam no pescoço e desciam, cada vez mais vermelhas, até os dedos nas unhas.
Ficou ali segurando a menina com a mão e, com outra, suplicando que dessem um jeito rápido, levassem logo ela para dentro.
De repente, sentiu o coração de Leididai palpitar no seu peito, descobriu a toalha do rosto dela, suor marejando. Enxugou o rosto da menina, que nem abriu os olhos, ficou tresvariando, mexendo a boca. Calada. A respiração foi ficando mansinha como se tivesse dormindo. Depois, sumindo de vez. O corpo dela se esfriando, gelando, mais um óbito de sarampo na abandonada cidade de São Paulo.
         Eva ou Maria Aparecida? A princezinha estava morta.

 


 

 

 

 

Remorsos

Roniwalter Jatobá

Jacinto viu, nublado, por duas vezes, as enfermeiras passarem por ele apressadas, olharem para a sua camisa suja de sangue e se perderem no corredor em frente.
A insegurança no trabalho, a coragem, essas, sim, ficaram no terreno da construção, bem próximo à casa da sua mãe. A escada em falso tombou entre baldes, tintas e aflitos: acode o homem! Pendurado entre garrafas pontiagudas, quebradas, que formavam barreiras no alto muro vizinho, Jacinto nessa hora somente sentia o frio da queda, o pavor de morrer. O peito, num rasgo profundo, dilacerado, em sangue.
Os gritos que ecoavam pelas casas vizinhas não interferiram na trajetória do líquido vermelho que suja e escorre pelos vidros, se esparrama, tornando o branco do muro uma cor rubra e real. As frases de Jacinto, da mãe, da meninada que correndo avisa, se interligam: -- Que pensação em morrer!; meu filho morreu!; ainda não morreu não! -- em eco triste no movimento da tarde.
A sala do hospital, mesmo com o sol lá fora, não tinha um janelão que deixasse a claridade entrar. A luz acesa durante o dia dava um brilho estranho, amarelo, às pessoas que ocupam as quatro cadeiras e o pequeno sofá rasgado no encosto. O registro beneficente na profissional não abriu portas nem fez mudar semblantes; rotina, espera. Na sala exígua podia ouvir as palavras, pouco usadas, dos que compunham o interior. Num canto, o ancião que respira descompassado, dificultoso, descrente da vida, olha para as próprias mãos, indiferente ao movimento, burburinho do hospital.
Várias vezes seguidas, a mãe de Jacinto, gorda, vestido azul trocado às pressas, entrou no banheiro no final do corredor para lavar o pano que limpava o sangue que escorria dele. No banheiro, as pessoas que aguardavam na fila, desinquietas, reclamavam da vida, da própria fila, de tudo.
-- Mãe, vou morrer! -- disse Jacinto, respirando forte, fraco.
Ele olhou os pés sujos de terra, o teto e os avisos colados na parede. Tentou ler, mas não conseguiu. Nem via no ambiente fechado, silencioso, sentimentos de tristeza, solidão, medo. Pessoas ansiosas por atendimento, pedintes, que ficam paradas, coladas em duras cadeiras, e têm os corpos doloridos pela longa espera, mas não perambulam pelo corredor, com receio de incomodar. Eles esperam que as situações digam mais, muito mais que as palavras que a custo sairiam de suas bocas medrosas de falar. E esperam. Arrenegando da hora em que, doentes, têm precisão.
A sirene da ambulância que se aproxima vai aumentando, aumentando, até dissipar os sussurros que escapavam no silêncio. A ambulância atravessa rente ao corredor, veloz como a dor de Jacinto. Ele sente pontadas e frio no coração. Ele delira inconsciente, imaginando.
Viu desaparecer na manhã o orvalho que teima em continuar nas folhas frágeis e minúsculas. Soltou das mãos que o seguravam e alçou um vôo rasteiro, depois subiu na imensidão do espaço que separa a vida da morte. Pairou de asas abertas. Grudou-as no corpo é soltou-se no espaço das lembranças, ora distantes, ora bem próximas, que davam a impressão de que ele participava.
Sentiu remorsos na destruição de vidas: formigas, nambus de pés roxos, nambus de pés vermelhos, aranhas, pássaros, preás, coelhos, o matar de frangos em dias de festas. Deu vontade de fechar as asas e precipitar este pequeno corpo de encontro às minguadas folhas, em baque surdo na terra.
De repente, grita. Jacinto sonha com o seu próprio vulto que, de cabeça erguida, grita e assobia para os cachorros que passam. Tinha saído logo cedo, sem caminho certo, vendo o mundo. Andou até a ponte do rio, de costas, contando os passos, pisando forte para deixar na areia fofa o rastro. Como se nada pudesse apagar a sua passagem.
Ficou acariciando um ramo de urtiga brava nos braços para sentir a coceira entrar devagarinho no corpo. Era loucura. Brincadeira de criança. A gente cresce. Quando começa a descobrir que o doce de goiaba feito na cozinha esfumaçada vai ficando com sabor diferente, fica adulto.
De pé, encostado à cerca, Jacinto vê formigas que correm indiferentes a ele, gigante que se posta em frente. Observa.
A qualquer momento, o trabalhador que ia à dianteira poderia cair com tamanho peso às costas. Seguia cambaleante, mas não atrapalha o movimento dos outros pela areia quente, indiferente à chuva que se forma e vai criando cores novas no céu. Azul... mil, infinitas. Nada disso interfere na agitação dos trabalhadores que se torna mais veloz e precisa no final da tarde. O trabalhador da frente agora se firma em um monte de terra, escora a carga e, sem perder a dianteira, continua guiando nesta pequena estrada uma infinidade... Comanda. Trabalha também. Alguns gostariam de parar, descansar O corpo dolorido de longas caminhadas, mesmo sabendo que se a chuva que se anuncia desmoronar os caminhos, aí sim o trabalho dobrará. Assim, o que toma a dianteira pouco se preocupa com o que está acontecendo à sua volta. O que preocupa mesmo é a carga pesada que balança ao sopro de qualquer golpe de ar. A formiga líder segue sem medo de sombras reais e gigantescas de Jacinto, que se contorcem na estrada. A bota direita de Jacinto: o obstáculo que se interpõe. Um pé embotinado que, por segundos, dificulta.
Em fila, cronometradas por um perfeito e pontual relógio que não bate as horas: esse sol que clareia a estrada de terra batida, trilhada na labuta, estrada sombreada. Sol que se rasga em fios por entre cerca de galhos, de ervas daninhas que, pensa a líder, não servem como alimentação. Caminha. Com o peso fatigante, à direita ou à esquerda, a visão é sempre a mesma. Parar não, deve pensar, sem ter tempo para brincadeiras, pois só o trabalho é importante. Sem trocar frases, absorta no alimento que carrega, não riria, também não ficaria triste, somente seguiria seus passos sem atrasar os outros. Pensa: um obstáculo que surja na frente e que porventura ocasione mortos, as que retomam devem cumprir rapidamente essa tarefa e, sem chorar os cadáveres, tirá-los para o lado à margem da estrada e amadurecer o corpo para novas lutas.
Imagina: no fim da tarde o trabalho finda. Dezenas de corpos que ficaram lá em cima estão à espera de que a chuva que começa arraste os seus cadáveres por enxurradas pequenas, mais na frente se avoluma, e que os corpos desapareçam nas corredeiras do rio, em direção de peixes negros, amarelos e famintos. Outras formigas apressadas pela noite que se aproxima nem param no local onde jazem os corpos.
Chove. Chuva fina, molhenta. Jacinto tira o pé que se apóia no arame farpado e pisa, traiçoeiro, espalhando as retardatárias trabalhadeiras, esmagando muitas com a sola da botina. Uma, mais afoita, defensiva, pula na sua perna, e aferroa dolorido. Ele pega a formiga entre dedos e arranca as suas patas, a cabeça, e joga o resto do corpo ao chão molhado, e ela pula com desejos incontroláveis de vida.
Jacinto sente, agora, o mesmo instinto de sobreviver. Segura forte o braço da mãe, esquecendo as lembranças, os remorsos, os sonhos impossíveis, com os olhos sem trajetória e sem sentidos.
Quando o primeiro vestígio branco da enfermeira atravessou a porta e se incrustou nas retinas da mãe de Jacinto, o último fio da vida dele desceu pela cadeira, não passeou pelo corredor do hospital, fugiu da fila do banheiro e se espalhou em grande quantidade pelo assoalho da sala. Sem grito de dor, Jacinto deu o derradeiro suspiro com naturalidade e apertou com mais força o braço gordo que o envolve. Afrouxou pouco a pouco, deixando marcas roxas que se limparam em momentos, desaparecendo na flacidez da gordura do braço materno.
A mãe levantou-se e ergue Jacinto nos braços, com esforço, e o carrega com dificuldade em direção à saída. Um corpo frágil, insensível, sem vida, frio.
A moça da recepção se sobressalta e diz:
-- Dona, volta!
Ela nada responde e nem se volta. Sai à rua e o impacto do sol entra em seus olhos, ilumina o vestido azul e penetra em seu coração, explodindo-o.

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

Aves de arribação

 

            Roniwalter Jatobá

 

Ele tem em algum lugar da casa uma fotografia que ano a ano envelhece, perdendo a cor. É o mais antigo registro do avô paterno. No verso, caligrafia bonita, a dedicatória a parente distante e o ano da pose: 1939. Ali estava reunida a família na véspera da festa de Bananeiras, dia de santa Ifigênia.

Ele reconhece em sérios semblantes tias adultas e tios ainda crianças. Quadro incompleto, a maioria longe, muitos sumidos na busca de destinos pelo mundo. Sente a falta, entre as mulheres, da tia Nanã. O pai, mais velho dos homens, vivia pelas minas do Mimoso, à procura de cristal de rocha e ametista. O tio Preto -- veja a coloração mais escura de sua pele -- também tinha ido pelas mesmas trilhas do garimpo, viciado nos jogos de azar. O tio Olegário já havia partido para o Rio de Janeiro, fascinado pelo futuro, e para onde seguiria, depois, também o tio Deco.

O retrato se fragmentava em sépia, filhos criavam asas, São Paulo era sonho.

 

ARTUR

Caen, dezembro de 1947. Artur  despede‑se triste da família e deixa para trás, ansioso, a casa e a roça onde vivera os primeiros 17 anos. Seguia os passos do irmão mais velho, que partira meses antes e vivia como ajudante numa fábrica de química.

A viagem era longa e extenuante. Da sede do município, em Jacobina, ele foi de trem até Juazeiro. Atravessou o rio e em Petrolina, já Pernambuco, comprou a passagem mais barata e embarcou no vapor que subia o São Francisco até Pirapora. Quinze demorados dias, período de seca, o barco vagaroso para não encalhar nas areias, Artur espremia‑se na segunda classe, localizada no porão, tal qual  um navio negreiro.

Depois, até São Paulo, mais três dias de viagem de trem. No começo de janeiro de 1948, Artur desembarcava na Estação do Norte, no Brás. De lá, mais trem e, finalmente, São Miguel Paulista.

O lugar inchava de gente. Tudo ainda tão pobre, tão nublado e frio, a fábrica de química arrodeada de casas. Artur caminha agora por ruas recém-formadas, de terra, a mala pesando -- procura da casa de um parente.

-- A rua 3 é aonde? – indaga.

O passante aponta no rumo do Jardim Helena, ainda cheio de mato e esparsas moradias de tijolos nus.

-- Não é longe, não – diz.

Artur continua se livrando de antigas poças d’água, uma lama só, na busca de um certo destino.

 

OSWALDO

Aprendera bem o ofício de carpinteiro com o pai nos arredores de Bananeiras. Tinha trabalho, mas um dia resolveu tentar a sorte. Viajou para São Paulo no final dos anos 70. Sempre com uma ocupação, mas o dinheiro curto mal sobrava para as despesas. Isso o preocupava? Aos domingos, era o primeiro a dar sua porção de ajuda aos construtores de final de semana, na preparação da massa na cobertura da laje ou no entalhe de uma porta ou janela.

Fria manhã de agosto. Oswaldo caminha pelos arredores. Desempregado, mesmo assim acordava cedo. Não conseguia ficar na cama depois das cinco. Naquela hora, sabia que dificilmente apareceria um emprego fixo, talvez o pedido para ajudar no próximo domingo no assentamento de laje na casa vizinha, mas sempre guardava uma réstia de esperança.

Segue na direção da antiga São Paulo-Rio, nessa hora movimentada. De repente, dobra uma esquina e, ao esperar a passagem num cruzamento, os olhos batem de frente num jornal pendurado na banca. Oferecia oito mil vagas para pedreiros, serventes e carpinteiros.

No burburinho, leu com atenção mais uma vez. Parecia milagre. Comprou o jornal e subiu no primeiro ônibus rumo ao bairro de Pinheiros. Foi um dos primeiros a chegar ao local indicado pelo anúncio. Logo, desconfiou que havia algo errado: “Moças bonitas nos receberam bem, mas disseram que o quadro de funcionários estava completo”.

            Em instantes, o carpinteiro descobria a verdade: reclame falso. Um trote havia levado centenas de desempregados a se aglomerar em frente ao Lino’s Clube Bar, um prostíbulo. A revolta foi tão grande que a PM foi chamada para conter os interessados nas vagas.

            De volta ao bairro, escurecendo, compara sua vida. Lembra que o vizinho tem uma ferida na sola do pé que o impede de caminhar. No outro lado da sua rua, uma construção recente perdeu a parede do quarto na erosão do terreno que dá para um riacho cheio de sujeira. De longe, Oswaldo avista a frente de sua casa, na rua de terra. Tem o rosto cheio de rugas, mas tão iluminado que parecia romper as trevas da noite. 

           

WALDOMIRO

Aos quinze anos, Waldomiro passou a sonhar com São Paulo. A vontade de ir chegava mais forte quando à mesa via as minguadas refeições ou quando ajudava o pai no frágil plantio de feijão ou mandioca.

            Corpo fraco, pernas finas e cabeça graúda, Waldomiro virou Mirinho. Não era de maldade, embora alguns meninos judiassem um pouco dele nas brincadeiras de futebol ou mesmo na hora do banho no Aipim, nos fins de tarde. 

            Mas, cada ser vivente tem seu destino. O primeiro caminhão, aquele que saiu em maio de 1960 para as terras de São Paulo, levou Mirinho entre outros vinte e dois passageiros. Sentado entre a cabina e a carroceria, abanava as mãos para todo mundo como se dissesse que sua vez, finalmente, havia chegado. A passagem fora paga em forma de serviço, como ajudante de caminhão, o primeiro trabalho longe da roça. A face magra brilhava risonha no entardecer da partida.

            Mesmo lendo as linhas tortas, aquelas traçadas em cada pedaço das mãos, ninguém sabia nada sobre o dia de amanhã. A precisamente três quilômetros do ponto da despedida, o Ford F-600 partiu o eixo dianteiro e caiu numa curva do rio Lajinha, em meio a gritos desesperados. Apesar de noite escura, uma turma correu para o local assim que chegou a notícia. Não foi um acidente trágico, embora o veículo tenha ficado inutilizado para qualquer viagem, imagine chegar até as proximidades da fábrica de química, em São Miguel Paulista.

            O mais avariado era Mirinho, que quebrou o braço esquerdo e fraturou a clavícula. Aflito pela perda de seu ganha-pão, o motorista contou que “o rapaz ficou ferido porque ali, entre o cocão e a carroceria, era impróprio para viajar. Não tinha culpa, já bastava o prejuízo com o carro seminovo.”

            Depois de alguns meses, Mirinho estava de volta ao mesmo convívio, embora o braço teimasse em chegar à posição normal. A mão apontava para cima como se pedisse a benção. Mesmo dentro d’água era um sacrifício. No rio, as braçadas viravam redemoinho e ele não saía do lugar.

            Mirinho voltou à labuta na roça, como ajuda mínima. O pai entregou as tarefas dele para o filho mais velho, Januário, um menino troncudo e malvado, que longe das vistas da mãe castigava sem dó nem piedade o irmão de sangue.

            Waldomiro foi ficando por ali, mas o sonho de ir embora para São Paulo não se afastava nem um pouco. Passou a assumir atitudes que muita gente chamava de loucura. Um dia, reproduzia na fala o arrastado sotaque dos habitantes de Piracicaba, noutro parecia um típico morador do bairro da Mooca.

            Sempre se tem uma explicação para tudo o que acontece na face da Terra. Quando os viajados chegavam de São Paulo a passeio, Mirinho era uma insistente presença, muitas vezes até incômoda. Além de pedir uns trocadinhos, escutava tudo dos recém-chegados da Capital ou do interior paulista. Até a maneira de tossir, ele ouvia extasiado, ouvidos atentos, arremedando cada palavra, cada gesto, com inteira vontade de se largar pelo mundo e voltar por igual.

            Aí, os visitantes diziam que tudo em São Paulo era formoso, de melhor não havia. Então, eles falavam sobre prédios grandes, dez, vinte andares, até tocando as nuvens. Falavam ainda de empregos oferecidos, a escolher, sem calos nas mãos, ganhando bom dinheiro para o gasto e fazendo pé-de-meia.

            Era mais um dia na vida de Waldomiro. Depois da feira semanal, volta para casa. Já tarde da noite, senta na cama e escuta o vento que sopra de longe, chamando. Fecha os olhos. Cansado, dorme. Durante a madrugada, sempre à mesma hora, chega o sono dos devaneios. Agora, não mais o desconforto do Ford F-600  que, há muitos e muitos anos, o transporta para São Paulo. Mas, sim, o vôo sereno sobre os ponteiros de um relógio Seiko, alado e pontual.

 

ROBERTO               

Já quase chegando aos quinze anos, as coisas foram ficando difíceis. Via que o trabalho do pai na fábrica de química, chegando mais tarde toda noite, pouco adiantava. Até que, um dia, o pai chegou na sala, todo mundo assistindo novela. Então, disse que já estava na hora de ir começando a trabalhar, cooperando com o sustento da casa.

Roberto não disse nada. A mãe reclamou que ainda era cedo, logo agora que ele ia findar o estudo no grupo, esperasse um pouco mais, terminasse o ginásio. Aí, sim, estava no ponto. O pai respondeu, já se sentando à mesa, que se quisesse continuar o estudo que fosse de noite. Todo mundo faz assim, completou.

Roberto não ficou muito sentido. O lugar de se divertir, o campinho, há muito estava cercado. A fábrica tomava tudo: cerca de arame com quatro fios, farpados. Em construção, só se ouvia de longe o barulho de concreto sendo despejado no chão, serras elétricas, serrotes comuns cortando madeiras; enxadas e pás tinindo de manhã à noite; o ar amarelo, cheiro de química.

Fizesse sol ou chuva. Aquilo nunca parava. Crescia sim. O terreno cercado de valetas, lugar de monturos, escoamentos de casas vizinhas, ajuntamento de urubus toda tarde, mudou. Naquele tempo, quase não tinha nada disso. Já não se escutavam os gritos da molecada correndo atrás de bola, não. Só o ronco dos caminhões descarregando, o apito de hora em hora, avisando.

A vila crescendo, mudando de cara, o apito avisando, crescendo, inchando de gente. A fábrica cada dia mais se alargando como teia de aranha, pegando os viajantes chegados de carteira em branco, com precisão, dando serviço aos que sabiam ler alguma coisa. O apito, chamando. Alguns, sem ciência de causa, achavam o trabalho até bom, pois de onde eles chegavam, diziam, não temos nem onde cair morto. O pai, feitor na fábrica, repetia a fala deles assim, sem dó.

Roberto conheceu o bairro nascendo, nos seus primeiros dias. Viu, por esta luz que alumia, um dia na tarde, um homem soltar um balde de cimento, escorregar no andaime mais alto, cair em piruetas, abrir os braços no ar e se chocar ao chão com baque surdo entre matos. Quis correr para lá, mas ficou receoso. Houve um ajuntamento de outros operários que estancaram o trabalho, mas não puderam fazer mais nada. Um feitor gritou que podia deixar, ele cuidava de tudo, que fossem trabalhar, não queria paradeiro ali. Arrastou o corpo pelos braços sujando o mato de sangue e entrou com esforço na construção, puxando o defunto.

Roberto correu medroso. Nessa hora chegou em casa sem saber o quê fazer. A mãe perguntou o que tinha visto: “Está branquelo, perdeu o sangue das veias, encontrou assombração, a polícia te pregou susto, isso é que dá ficar na rua zanzando, vadiando. Bem feito”, terminou dizendo.

Ele não contou nada. Nunca tinha visto ninguém morrer. De noite, na mesa, todo mundo jantando, tocou no assunto. O pai assuntou acendendo um cigarro, a mãe repreendeu com as vistas. Aí o pai disse vai dormir, deixa de histórias de Trancoso. Depois, falou que daquela semana não passava, já tinha emprego garantido. Ia começar, passado do tempo, no mais tardar, segunda‑feira que entra.

Ele saiu para o quarto, uma coisa lhe dizendo na cabeça, perguntando, se trabalhar era bom. Ele ainda não sabia. Continuou no grupo escolar estudando na hora da noite. A bola foi para um canto da casa e nunca mais saiu de lá. A mãe, naquele tempo, quase nada conversava o dia todo. Sozinha em casa, com quem? Na rua ela ainda não havia feito nenhuma amizade.

 

RONALDO

Filho de pai nordestino e mãe paulistana, tinha 11 irmãos. Era moço ainda, aí pelos 15 anos, quando praticou o primeiro crime. Não entrou na malandragem por acaso. Numa briga de bar na antiga rua 4, depois de sair de um baile na madrugada de sábado no Clube da Nitro, seu irmão mais novo foi assassinado por uma dupla ao se defender do roubo de uma bicicleta.

No velório, Ronaldo jurou vingança. Mas não ficou esperando que os dois matadores passassem em frente à sua casa ou, um dia, encontrasse eles jogando sinuca no bar do Sulino, no Jardim Maia. Não, ao contrário. Saiu do enterro no Cemitério da Saudade com os olhos cheios de ódio e, gravado na retina, o retrato 3 por 4 dos dois.

Na época não possuía arma de fogo, mas apenas uma peixeira que o pai trouxera uma vez da Bahia e usava para descascar cana de uma touceira que ele cultivava espremida no quintal. Embrulhou a faca numa folha de jornal. Rodou a Nitro Operária, do começo da noite ao raiar da madrugada. Noite seguinte, achou os dois num bar na esquina da Pedro Soares de Andrade com a antiga estrada São Paulo-Rio.

Magro, físico de desnutrido, parecia que ia ali dentro pedir um refrigerante ou comer um doce junto ao balcão. Nada. Foi desembrulhando a faca logo na entrada. Quando Tenorinho deu por conta, não havia tempo de largar o taco e procurar defesa. O rapaz apenas encostou na mesa e recebeu o primeiro golpe que lhe cortou a veia do pescoço. Marcelo, o segundo com a morte anunciada, correu em desabalada carreira e atravessou, com carros buzinando, a via movimentada.

Chovia fino. Ronaldo saiu em perseguição e perto dos trilhos da antiga Central do Brasil, junto à estação ferroviária de São Miguel Paulista, o outro escorregou na lama vermelha. Com passo firme, Ronaldo chegou bem perto e, olhos fixos nos olhos do rapaz, enterrou-lhe a faca até encostar o cabo na sua pele branquela. A chuva caía cada vez mais forte.

           

            NANINHO

Meio agalegado, de estatura mediana, aparentava 30 anos. Vivia entre os pequenos animais de Bananeiras. Ao apontar do trem na curva da Lajinha, na beira do rio Aipim, recostava-se na anca magra de uma vaca e acompanhava o barulho dos vagões passando sobre o pontilhão, os guinchos dos freios nos trilhos, a locomotiva da Leste Brasileiro se arrastando nas linhas cobertas de mato até o reservatório de água da estação.

            Depois, no caminho de terra, em frente ao cercado de animais, Naninho passava riscando com seu cavalo de pau, o gado que ali remoía sempre dócil à sua passagem como se ele fizesse parte daquele mundo.

            -- Olha o trem – gritava ele, ligeiro trotando.

            -- Lá vai o Príncipe – brincavam.

            Dia após dia, Naninho fazia aquele trajeto. Eram três quilômetros de sua casa até a estação. Nunca demonstrava cansaço. Sempre à espera de Francisco, o irmão, que há dois anos viajara para São Paulo para trabalhar na fábrica de química.

            Logo o trem partia. A maria-fumaça resfolegava na saída da estação. Apitava, espantando jegues, e bois, e vacas, e cabritos  que pastavam o capim verde da beirada dos trilhos.

            Naninho ressurgia nas ruas para a mesma vida. 

-- Não veio hoje – dizia nos quatro cantos da cidadezinha. – Meu irmão chega no trem de amanhã – acreditava sempre.

Ao cair da tarde, voltava para ficar junto dos animais. Ali, ficava em silêncio por algum tempo. Depois rodopiava com o cavalo de pau na fina areia da estrada e com o pé descalço desenhava um círculo, onde ficava preso e estático.

-- O que aconteceu, Príncipe? –  um dia alguém perguntou.

-- Tenho fé. Um dia ele volta – sonhava Naninho.

-- Pra que irmão, Príncipe?

            -- A gente precisa de alguém no mundo.

            -- E se ele morreu?

-- Nunca se soube.

            -- Que é isso, Príncipe? Por que essa tristeza?

            Não dava nenhuma resposta.

            -- Vamos embora, cavalinho.

            Todas as manhãs, Naninho passava célere espirrando areia no mato da beira da estrada e logo sumia, rumo à estação de Lajinha, açoitado pela sua eterna peregrinação.

 

            JOÃO DE DEUS

Chegara a Bananeiras há anos montado num jumento e se dizia o salvador do mundo. Rodava dia e noite pelas ruas puxando o animal, não lhes faltando água nem alimento. Pregava contra os pobres, os preguiçosos, os adoradores de estátuas. Nas madrugadas, seu animal pastava na praça; ele descansava o corpo na base de cimento do cruzeiro da igreja. Em noites de chuva, recolhia-se nos beirais da casa do padre, quando amanhecia borrado de cagadas de andorinhas.

            A mãe gostava de João de Deus. Ouvia a pregação do louco. No final das refeições, guardava sempre algum resto de comida para o desgraçado. Dizia que ficara doido no trabalho da fábrica de química, cheirando gás noite e dia, em São Miguel.

            -- É agora inocente como as crianças novinhas – a mãe dizia confirmando seu apego.

            -- Você e suas histórias – reclamava o pai.

            Vezes, João de Deus sumia. Montava no animal e ia para as montanhas, onde por dias vivia como ermitão. Diziam, porém, que ele buscava era o tesouro dos Muribecas, uma tribo indígena que vivera há muitos e muitos anos na Montanha Azul.

            Um dia, o pai resolveu seguir João de Deus. Passo a passo, acompanhou sua caminhada rumo à montanha. Junto à margem do rio, ele seguiu por uma trilha que desembocava numa caverna encravada no morro. Ali, ele desapareceu na gruta conhecida como o Buraco do Diabo.

Nas proximidades do buraco, o pai ficou com medo. Afinal, o local era considerado assombrado. Mesmo assim, esperou por quase três horas. E nada de João dar sinal de vida.

Finalmente, o pai resolveu entrar na gruta. O local cheirava a umidade e a mofo. A terra era mole na entrada, atolava os pés. Mas, adiante, tudo se transformava: salão calçado de pedras e, num canto, corria um riacho de águas cristalinas. Quente e agradável, o lugar era usado por João de Deus para fugir, uma vez por ano, do inverno rigoroso e das chuvas finas e intermitentes que duravam dias. Condoído com a solidão do homem, o pai fez um pacto consigo mesmo para nunca revelar o esconderijo de João de Deus.

Quando o delegado Ataulfo Salestiano chegou ao poder policial do povoado, no final de janeiro de 1961, os loucos ali rarearam como por encanto. João de Deus morreu dormindo, a cabeça esmigalhada pelas patas de seu jumento. Ninguém conseguiu ver naquela pasta de sangue e barro as feições de João de Deus: foi reconhecido pela vestimenta. Usava longa bata de sacos de açúcar que se arrastava no chão. Mas, certamente, todos sabiam que aquela crueldade não fora feita pelo seu jumento, já que também conheciam a docilidade do animal.

Quando morreu, João de Deus devia ter pouco mais de trinta anos, mas aparentava cinqüenta.

           

GUSTAVO

Vivo ainda, anda hoje pela casa dos 70. O dia inteiro arrastava um saco de aniagem cheio de papéis e jornais antigos. Trazia um defeito de nascença: os dedos das mãos eram abertos e pregados como pés de pato.

Não sabia, ou não queria dizer, de onde tinha vindo. Falava vagamente que um dia fora dono de terrenos e casas num lugar de São Miguel Paulista, perto da fábrica de química. Ninguém acreditava. Por isso, vivia xingando as autoridades pelo roubo de suas posses.

Numa manhã de setembro, tirou a roupa e mostrou suas vergonhas na saída da igreja. Frei Otto Müller, olhos saltando nas órbitas, rosto vermelho de raiva, esqueceu o perdão celestial, pois Gustavo foi preso logo depois. Solto, diminuiu o ímpeto de suas aparições desconcertantes.

Já no tempo do delegado Ataulfo Salesiano, Gustavo foi novamente preso, agora às escondidas. Apanhou bastante, fato muito comum nas prisões do interior do Brasil. Logo na saída começou a gritar o nome dos torturadores.

No dia seguinte, foi massacrado a pauladas e amanheceu quase agonizante no meio da chuva, recitando os nomes, um por um, dos algozes. Achou que iria morrer, achou que estava morrendo.

Arrastaram Gustavo até a porta da igreja e deitaram o seu corpo numa velha esteira também encharcada de água e lama. Debilitado, gritava cada vez mais baixo que não perdoava os seus torturadores. Sangrava muito. Alguém cismou de chamar o padre. Durante a extrema-unção, Gustavo encolheu os pés e com um vigor estranho num moribundo chutou a cara gorda de Otto Müller. Com lucidez e gritos entremeados de palavrões, conseguiu dizer:

-- Fora, velho alemão... Os pecados são meus.

Depois disso, foi levado para morrer em casa. Contam que uma curandeira receitou chá de raízes de colonião e banhos com água fervida em assa-peixe. Durante dias, sofreu com dores lancinantes. Os pés ficaram tão gelados que pareciam estar separados do corpo.

Os banhos de assa-peixe deixavam em sua pele uma gosma semelhante a mandi-chorão recém-fisgado. Por mais de um mês, antes de ficar bom, ao tentar se levantar sentia as pernas dobrarem e um aperto no coração.

 

DORALICE

Num ameno domingo de dezembro, véspera de Natal, Doralice estava sentada na pequena varanda de sua moradia na rua Pedro Soares de Andrade, em São Miguel. Olha o bairro conhecido que já principia a esmorecer de movimento, sossegando no começo da noite. Ao seu lado, também ocupando uma cadeira de plástico branco, seu marido e químico aposentado, Josué, faz parte do silêncio. Filhos já criados e casados, os dois já entravam na casa dos 60.

-- Dora, qual a cor do vestido que você está hoje?

            Fogem os devaneios de Dora. Naquele preciso momento, a mulher pensava numa longínqua data de setembro de 1973, dia de seu casamento. Então, ela responde uma cor qualquer que tinha retida na memória – azul --, que Josué gostava na vida de outros tempos.

            Chega o mesmo silêncio de casais antigos. Ela olha em direção as curvas do rio Tietê e, depois, volta para suas antigas lembranças. Numa tarde, estava no Clube da Nitro. Uma fita amarela, que prendia-lhe os cabelos, foi o começo de tudo. Quando ela se desprendeu, arrancada pelas mãos ágeis de Josué, os seus cabelos esvoaçaram-se ao vento. Ele acalmou-os, depois desfez o nó do laço e jogou a fita sobre as águas. A fita, então, rodopiou na beira da murada da ponte, caiu, teimou em afundar e ficou boiando.

            Casaram-se na antiga igreja de São Miguel e, durante os cinco dias seguintes, se conheceram mais intimamente num pequeno apartamento emprestado por um colega de trabalho na praia do Gonzaguinha, em São Vicente.

Depois, o dia após dia. Muitas vezes, nalguma tarde, andava apressada -- cheia de compras, o dia tão curto --, quase correndo no meio da rua, para esperá-lo. Labutava duro nos cuidados com a casa, mudava, trocava os móveis toda semana de canto. Ele chegava, olhava, aprovava, dizendo bonito. Outros dias, em começos de anoitecer, assustava-se em imaginar que aquele seria o instante em que não veria mais o bater do trinco no portão, o limpar de sapatos no capacho, o girar da chave na fechadura. E Dora na sala esperando-o mesmo sabendo que ouviria apenas o cansado boa-noite.

            Uma noite esperou. Espera fora de costume. Deu para reparar em tudo que era gente que passava na rua. Na cozinha, imaginava ouvir o trinco no portão. Corria à janela, de onde podia vê-lo passar pela varanda. Mas, ele não chegava. Então, o trouxeram da fábrica de química. Havia passado a noite no hospital. Ataduras cobrindo-lhe a face, se maldizia:

-- Maldito acidente. Onde meus olhos ficaram?

Não se conformava:

-- Antes a morte. Sem vista no mundo, pra quê?

Calada, ela ouvia tudo aquilo e sabia que na vida, em muitos de seus meandros, não há caminhos de volta.  Para confortá-lo, sempre respondia:

-- Pra tudo tem um jeito.

-- Nunca mais vou ver as águas do rio Aipim. 

            Na tarde de domingo em que abre suas lembranças no vazio de seu bairro, ela sabe que os móveis, faz muito tempo, permanecem intocados. Mãos espalmadas no braço da cadeira, ela sabe que Josué nunca será o mesmo.

Agora, como faz sempre, ele chama:                     

            -- Dora, me ajuda a ir ao quarto.

            Ela desvia o olhar da rua vazia. Levanta. Puxa as sandálias debaixo da cadeira. Chora penosa e limpa as vistas no vestido, que é azul mesmo. Aproxima-se dele e pousa a  mão em seu ombro.

            Ele levanta seguindo a mulher. Ela guia seu corpo, livrando-o dos baques no sofá, na mesinha de televisão, na porta do quarto.

            Junto à cama, ela ajeita o lençol e o travesseiro. Ele senta. Tateia e segura sua mão. Há um sinal de amor antigo e gratidão. Não dá para ver seus olhos.

           

            JÚLIA

Sua tristeza torturava o coração. Então, ele levantou-se e foi à cozinha apanhar uma bebida.

            -- Quer um vinho? – oferece.

-- Só um copo com água – responde Júlia com melancolia.

            Na cozinha, enquanto ele lava um copo para enchê-lo de água, imagina-a doente. Estava muito pálida – ou seria o reflexo da lâmpada da sala acesa no cair da tarde?

            As mãos dela tremem quando tocam o copo nos lábios grossos, um fio de água escorre na pele branca, deixando um sulco como se fosse uma longa e sofrida lágrima. Júlia  olha para ele profundamente, ele que comprime o corpo com força de encontro à poltrona.

            -- Ele está morto. Gabi morreu – chora pelo  ex-marido recentemente falecido.

            Senta no sofá e não encontra uma palavra sequer para consolar Júlia. Feito um idiota passa a mão direita entre os fios ralos e brancos da barba malfeita. Nem ousa fitar seus olhos, apenas fica observando as mãos trêmulas e que, inevitavelmente, caminham para o envelhecimento.

            -- Júlia, minha leoa, estamos velhos – ele diz sem nenhum sentido, palavras tolas jogadas ao vento.

            Ele sente o ar abafado do apartamento, o ar que foge como um pássaro assustado. Abre a vidraça da janela e olha a rua onde reconhece em detalhes minúsculas manchas do asfalto.

            -- Júlia – chama.

            Caminha novamente até a cozinha, volta ao quarto, à biblioteca (um pequeno cômodo transformado em depósito de livros). Por último, abre a porta do banheiro.

            -- Onde ela está? – indaga.

            Aí pensa que ela não se despediu com o seu hábito amoroso de sempre dizer adeus com a mão no trinco da porta, mesmo se voltasse no dia seguinte ou um mês depois.

            Ele corre de volta à janela. Lá embaixo está Júlia, longe agora do seu alcance. Pouco a pouco, o vulto se distancia, sumindo na escuridão de alamedas floridas. Pensa em gritar seu nome, mas desiste. Sobre o sofá vê o xale branco deixado ali de propósito, de onde emana o cheiro de seu corpo.

            Anda sem rumo pelos cômodos, olhando sem prazer livros e quadros apenas para afugentar os pensamentos. O telefone toca. Corre para o aparelho com medo de ouvi-lo silenciar de repente.

            Era Júlia. Desta vez não só queria falar de mistério, mas também dizer que a partir de amanhã – amanhã – vai estar aqui para sempre.

            Retorna à janela. Depois, ele desliga as luzes do apartamento, buscando uma proposital escuridão, e a rua cresce iluminada à espera da noite.

  ANIVERSÁRIO

Ele está à espera desde a manhã, bem cedo. Vieram os amigos, os padrinhos e os parentes. Vieram para o almoço festivo, num belo domingo, em comemoração ao 19º aniversário do filho mais novo. O pai chega mais cedo ao apartamento de Júlia, a mãe do jovem. Embora estejam separados há anos, são casuais amigos.

O pai leva, debaixo do braço, um álbum com o registro fotográfico do menino, desde pequenino. São retratos, alguns desfocados pelo mau uso da câmara, mas que revelam momentos da passagem do menino pela face da Terra.

Faz tempo que ele não via aqueles álbuns. No sofá do apartamento, aponta velhos retratos: ali estava o filho no dia em que veio ao mundo, no quarto do hospital. Ali estava ele, já de colo, observando o seu trabalho no plantio de árvores no sítio em Embu ou, mais tarde, aprendendo a andar de bicicletas.

Uma das fotos de poucos anos atrás, porém, chama sua atenção. Agora ele se lembrava, sim, foi no fim daquele dia, depois que todos já haviam se esbaldado de bebida no churrasco e ido embora. Naquele momento, sozinho na sala, toca o telefone. Com a revelação feita, o casamento acabou logo em seguida – e Júlia mais o filho, que chegava à adolescência, partiram.

O pai segura um álbum cheio de fotografias coloridas do filho, olha tudo aquilo numa união de remorso e saudade, e, voz embargada, diz que no seu tempo de infância ninguém pôde fazer igual, nem mesmo em branco-e-preto. Até os vinte anos, quando aportou em São Paulo, não guardava nenhum flagrante de sua trajetória. Onde vivia raramente aparecia um fotógrafo e eram raras máquinas de tirar retratos. De sua família, com tantos entes espalhados pelo mundo, restava apenas uma velha fotografia, agora  guardada no fundo do armário de casa, datada de um mil, novecentos e trinta e nove.

 

 

 

 

 


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